sexta-feira, 3 de outubro de 2008

REMINISCÊNCIAS E ROSTOS ANÔNIMOS

Movido por reminiscências que me sacodem as convicções, quero homenagear os anônimos de toda a vida, dizer do valor que eles têm. Meu pai, lavrador já falecido, gostava de citar em abono de suas idéias o ditado: “Ver e não conhecer é ruim, não saber o nome é pior.” Do outro lado do plano intelectual, o erudito juiz federal José Carlos Garcia fala do “rosto coberto do braço impessoal que decepa a cana”, no livro De Sem-rosto a Cidadão, que li em 2004, e Genival Veloso de França, médico, escritor e professor renomado, escreveu, à guisa de capítulos do seu livro Direito Médico, o “Salmo para um cadáver desconhecido” e o “Salmo para um indigente”. É o clamar de três classes a favor do anônimo e contra a teia voraz do descaso e do esquecimento.

Essas reminiscências iam e vinham nas longas reflexões a que me entreguei (ou que tomaram conta de mim) durante a recente internação no Hospital Climec a que fui submetido. Lembranças da infância, adolescência, juventude e da vida inteira até aqui. Coisas que ora me entristeciam, ora me embeveciam a alma e, nos momentos de esperança, faziam aflorar o desejo de escrever uma crônica, várias crônicas, idéia reforçada várias vezes, dia e noite, ao fecharem a porta atrás de si, nas muitas vezes em que me atenderam, as enfermeiras e zeladoras do hospital.

Quase tudo na vida é fruto da união sistemática dos esforços de pessoas diversas, não obstante, com mais freqüência do que se imagina, o agir da maioria passe despercebido e não logre jamais ter reconhecido o mérito de que é credor. Assim é no hospital, na igreja, no quartel, na fábrica, na escola, enfim, em todos os lugares e segmentos da atividade humana. É grande a multidão dos anônimos, massa informe de relegados ao esquecimento, sem-voz, sem-vez e sem-glória, a servirem de escada ou trampolim para os (bem mais poucos) poderosos.

O hospital não funcionaria se não fora o sem-número de pessoas existentes além dos médicos: enfermeiras e enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, porteiros, atendentes, zeladores e administradores, não necessariamente nessa ordem. E essa é a regra, a valer para os outros segmentos, lugares e instituições. Não se pode esquecer, por certo, de que em todos os lugares há também pessoas ruins, desonestas, criadoras de problemas, que atendem mal e fazem de tudo para dificultar a vida do semelhante. Essas, contudo, são a praga, a erva daninha, indignas, portanto, da nossa lembrança. “O ruim por si mesmo se destrói”, já diz a sabedoria popular.

Os rostos anônimos e braços impessoais de todos os lugares, indivíduos aos quais não se conhece e de quem nem sequer se procura saber o nome, servem com bondade, zelo, amor e dedicação a toda a prova. São pessoas que, não raro, desconhecem a palavra mais-valia e abnegadamente esquecem ou relegam ao segundo plano e em proveito de terceiros, até onde lhes é possível fazê-lo, os próprios dramas do dia-a-dia e problemas pessoais.

O açúcar que adoça o cafezinho é resultado, como produto final, da cana que um dia, em algum lugar, foi plantada, depois decepada e, depois ainda, esmagada pelo mover do braço impessoal de rosto anônimo. Também o é, sem pôr nem tirar, o álcool que faz andar o carro. E assim é em relação a quase tudo na vida. Do nosso conforto, lazer e bem-estar, devemos muito mais do que imaginamos a pessoas que às vezes passam por necessidades e sofrem privações de toda a sorte neste mundo de injustiças e desigualdades a cada dia mais recrudescentes.

Este sentimento de gratidão aos muitos anônimos a quem devemos tanto da nossa vida me faz recorrer a um dentre os muitos livros da minha biblioteca, Correspondência: Linguagem & Comunicação, de Odacir Beltrão, autor que há muito se foi do nosso meio. Essa obra, publicada em 1940 e editada desde 1964 pela Editora Atlas, é de uma atualidade a toda a prova, razão por que continua como obra didática e fonte de pesquisa para estudantes e profissionais. Dela tenho dois exemplares: um da 19.ª edição, de 1995, que comprei em junho de 1996, e outro da 16.ª edição, de 1981, que, após longa procura, comprei da Traça Livraria e Sebo, agora em agosto de 2008.

É desse livro que retiro um dos trechos que já li e reli inúmeras vezes no decorrer dos anos, porque me fala à mente e ao coração. É parte da mensagem comemorativa do Dia do Comerciário, da empresa SAMRIG S.A., página 263 da 16.ª edição e página 273 da 19.ª, que diz: “moça simples... estória importante... Alguém, um dia, contará a tua estória. E dirá que, sem ti, poucas coisas seriam como são. Haveria menos sorrisos nas faces das crianças. E menos conforto dentro dos lares. Porque és o último elo entre o fabricante e a dona de casa. E da tua contribuição dependem o progresso e o bem-estar de milhões.”

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