sábado, 25 de outubro de 2008

IMPUNIDADE E VIOLÊNCIA

“Só o crime se sente em segurança.” Essa frase, hoje mais verdadeira do que nunca antes, é de Rachel de Queiroz, encerrando a crônica “Os salteadores à solta na floresta urbana”, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de 2 de novembro de 1990, e pela Revista da Academia Brasileira de Letras (ano 90, volume 160), edição de julho a dezembro de 1990. É a penúltima frase do texto, com a qual Rachel protesta contra a violência impune dos maus a que estão submetidos os bons.

Dias depois, Abgar Renault, imortal da Academia Brasileira de Letras como Rachel, faria menção especial dessa crônica, na sessão de 21 de novembro de 1990 da Academia, dedicada à comemoração dos 80 anos de idade da autora. Ele, aliás, não apenas mencionou a crônica “Os salteadores à solta na floresta urbana”. Fez mais do que isso: ele a leu. E, do alto da sua autoridade de imortal, a classificou literariamente, dizendo “que é uma página realmente extraordinária em toda nossa literatura, embora tenha sido escrita como uma crônica”.

É fato, e contra fatos não há argumentos. Na crônica, após sumariar a insegurança que reinou em todos os sentidos nos séculos passados, Rachel de Queiroz, indignada, fala da insegurança e da violência geradas pela impunidade de nossos dias. Semelhantemente, 2.700 anos atrás (por volta de 710 antes de Cristo), como diz a Bíblia, falou o profeta Oséias: “O que prevalece é perjurar, mentir, matar, furtar e adulterar, e há arrombamentos e homicídios sobre homicídios” (Oséias 4.2).

Rachel chora o choro de todos nós, brasileiros do século XXI: “A casa do cidadão deixou de ser o seu castelo. Os transportes públicos são mais vulneráveis a ladrões e assassinos que outrora as florestas infestadas de salteadores. O assaltante vem te buscar na tua cama, na cozinha, no escritório. O recesso do lar passou a ser uma metáfora cômica. As prodigiosas invenções da ciência não nos protegem em nada. O homem anda no espaço sideral com menos risco do que tomando um ônibus na sua rua. Não há habitante de qualquer cidade que não tenha a contar suas experiências pessoais de violência, assalto, tiros, facadas, seqüestro.”

O que ela descreve é o atual cotidiano amargurado de todos: a violência que afronta, assusta, humilha e mata, perpetrada por seres indignos da classificação como humanos. Aliás, o indivíduo que, na baixeza de sua sanha cruel e imunda, assalta, estupra ou comete outros delitos da atualidade não pode ser classificado como animal irracional, pois os animais irracionais não cometem tais barbaridades.

Não faz muito tempo, a casa, como a igreja, era tida por lugar seguro, acolhedor e protetor. Prova disso era o dizer popular que já não tem sentido algum: “Em casa, na cama, ou na igreja, rezando, é que não estava.” Dizia-se isso ante a notícia de que algo ruim acontecera a alguém, querendo-se dizer que em casa e na igreja a pessoa estaria a salvo e protegida. Bons tempos aqueles! A casa, em nossos dias, já não é de fato o asilo inviolável, o recanto indevassável e protetor. Além da violência física, que dizer das escutas telefônicas clandestinas? Rachel tinha razão: “Só o crime se sente em segurança.”

Nenhum comentário: