quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Legítima defesa ou estado de necessidade



Madrugada (alta noite, portanto), numa fazenda qualquer do sul do Pará. A onça pintada invade a casa da fazenda, mata um cão dentro da cozinha, põe o morador para correr e ainda lhe fere a coxa do vizinho Filó, que ousara vir-lhe em socorro.

Somente depois de tantas escaramuças, o temível e feroz animal foi abatido a pauladas. Bem feito! Teve o fim procurado e merecido. Inaceitável (porque impossível) que se exija conduta diversa do morador e seus vizinhos. Se fosse gente o invasor, homem ou mulher, mereceria receber o mesmo tratamento; a conduta do morador poderia ser a mesma. Neste caso, apenas o nomen juris da reação, na seara penal, seria diferente; o efeito seria o mesmo: exclusão de ilicitude. Na reação contra a onça, a excludente por estado de necessidade; naquela contra conduta humana, a excludente por legítima defesa.

A reação do pobre morador e seus vizinhos constitui, no Direito Penal, um fato típico cometido em estado de necessidade. Se fora contra pessoa humana, seria um fato típico cometido em legítima defesa. Fato típico, para conhecimento do leitor, é todo o ato que a lei penal define como crime. Assim, em ambos os casos, o fato seria típico, mas não haveria crime, por causa da exclusão de ilicitude.

Não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. É isso que está escrito no art. 23 do Código Penal. Mas não é só isso. A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Ninguém (nem homem, nem mulher, nem onça, nem qualquer animal bravio) poderá adentrá-la sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. É o que diz o art. 5.º, inciso XI, da Constituição Federal.

Estranhamente (o que penso dever-se ao desconhecimento da lei penal), o jornal Correio do Tocantins, edição de 14 a 17 de dezembro de 2007 (ano XXIV, n.º 1.691), que traz a manchete “Fazendeiro mata a onça e mostra o pau”, afirma, duas vezes, que foi ilícita a conduta do morador. Primeiro diz que, ao virem Filó ferido na coxa, todos partiram para cima do animal “em desacordo com a lei ambiental de fauna e flora brasileira (que protege a onça por estar em extinção)”. Depois conclui fazendo “lembrar que constitui crime contra a fauna brasileira, matar ou manter em cativeiro qualquer animal sem licença do Ibama”. (Explicando a sigla, para quem não sabe, Ibama é Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.)

Ouso discordar do jornal. E o faço porque, nas circunstâncias do caso narrado, o simples fato de matar o animal, não constitui crime. Só há crime em casos como esse se houver excesso na reação. Mas isso, em qualquer caso, só se sabe depois do processo penal que regularmente venha a ser instaurado, instruído e julgado. Até que isso ocorra, todos são inocentes, porquanto “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, como assegura o art. 5.º, inciso LVII, da Constituição.

Quem, na forma da lei, atira ou pratica qualquer outra ação letal, contra a onça ou qualquer outro agressor, como meio necessário para salvar direito próprio ou alheio ou para fazer cessar injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, não comete crime, porque age sob a exclusão de ilicitude. O fato é típico, mas não há crime.

Se algum atrevido, caro leitor, adentrar sua casa, para atacar injustamente direito seu ou alheio, e se, para evitar a agressão ou fazer que ela cesse, for necessário matar (seja homem, mulher ou animal bravio), podendo matá-lo, mate-o. A lei autoriza qualquer agredido a fazer isso, em estado de necessidade ou em legítima defesa. Não é palavra do advogado, é a letra e o espírito da lei.

“Diante da agressão injusta, não se exige a fuga”, escreve com autoridade Damásio Evangelista de Jesus. O que se pode exigir é o comodus discessus, ou seja, o cômodo afastamento, a saída honrosa. Com efeito, como dizia meu velho pai, da rua se pode e, se possível, deve-se correr, para não matar ou morrer. Mas só até a casa. De casa, não. Azar da onça ou de quem quer que seja.

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